terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Obituário

Maria nasceu em 19/05. Quando bebê caiu do colo do tio Marcel e uma semana depois enfiou um feijão no nariz. Sempre foi sapeca. Já mais crecida, gostava de ouvir o rádio enquanto sua mãe cozinhava. Ficou mocinha aos treze. Deu o primeiro beijo aos 14. Tinha vergonha das pessoas, achava que era mais fácil lidar com comida. Tinha paixão pelos temperos, pelos vegetais... Nasci cozinheira, dizia.
Quando completou 18 anos, começou a trabalhar no restaurante de sua mãe. Aos 20 conheceu seu cliente mais exigente, Arthur. Apaixonaram-se, casaram-se e um ano depois nasceu Lilian. Maria sofreu com a primeira febre e a primeira injeção. Brigou com Arthur por deixar a pequenina assada. Naquele dia, seu marido dormiu no sofá. Alguns anos se passaram e Maria aprendeu a ser mãe. Chorou na apresentação de dia das mães, de dia dos pais, na festa junina, no dia dos avós, no seus aniversários, na formatura de fim de ano... Maria tornou-se mulher. Mulher, mãe e excelente cozinheira.
No jornal uma pequena nota:

Maria da Rosa Morena, 43 anos, cozinheira, filha de Aparecida Amaral Morena e Leandro Honuar da Rosa. Sepultada ontem.

Maria da Rosa Morena é uma personagem fictícia, essa história foi escrita para que eu mostre minha indignação com obituários. Toda a vida de uma pessoa é apagada. A nota esquece de lembrar o desespero de ficar menstruada, do sacrifício de fazer seu primeiro pimentão recheado. O obituário jamais lembraria do tio Marcel, do feijão, da dor de ver a filha chorando com a injeção. E a primeira vez? E aquele dia na praia que ela encontrou uma tia que não via há anos?

A vida é muito bela. É composta de pequenos momentos, grandes vitórias e amargas derrotas. O que são obituários para reduzir a beleza ímpar de uma vida a uma nota de 2 linhas?

- Gina

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. O jeito é se 'obituar' com isso...
    infelizmente, vão fazer um obituário nosso pelas costas, sem podermos contrariar e nem vão falar nos nossos obituários que não concordávamos com uma coisa dessas.
    Maria morreu de que? 43 anos, coitada!

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  3. Nem todos os obituários são tão injustos assim com a vida das pessoas. Claro, nunca será suficiente a ponto de dar conta de mínimos detalhes. Nem mesmo uma biografia seria suficiente, nem mesmo um relato oral sobre a vida da pessoa seria suficiente. Àqueles que pretendem ler obituários que fogem dessa estrutura "fria" e reducionista, recomendo a leitura dos obituários da Folha de SP. São textos pequenos, que ficam no pé da página do Caderno Cotidiano, mas que pelo menos têm um toque criativo bem mais acentuado. Agora àqueles que não se sentirem satisfeitos, indico a leitura de um livro publicado pela Companhia das Letras, chamado 'O livro das Vidas', que reúne os 100 melhores obituários do New York Times. São textos primorosos sobre gente anônima, sobre pessoas importantes em seu meio, mas desconhecidas do grande público. São textos muito mais literários do que jornalísticos. E, bem, isso já é um motivo mais do que suficiente pra dar uma conferida.

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