sexta-feira, 11 de março de 2011

Auto da Lusitânia, de Gil Vicente

Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
                           delas não posso achar,
                           porém ando porfiando
                           por quão bom é porfiar.

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
                           e meu tempo todo inteiro
                           sempre é buscar dinheiro
                           e sempre nisto me fundo.

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
                 e busco a consciência.

Belzebu: Esta é boa experiência:
                Dinato, escreve isto bem.

Dinato: Que escreverei, companheiro?

Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
                e Todo o Mundo dinheiro.

Ninguém: E agora que buscas lá?

Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
                 que tope com ela já.

Belzebu: Outra adição nos acude:
                escreve logo aí, a fundo,
                que busca honra Todo o Mundo
                e Ninguém busca virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?

Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
                           tudo quanto eu fizesse.

Ninguém: E eu quem me repreendesse
                 em cada cousa que errasse.

Belzebu: Escreve mais.

Dinato: Que tens sabido?

Belzebu: Que quer em extremo grado
                Todo o Mundo ser louvado,
                e Ninguém ser repreendido.

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

Ninguém: A vida não sei que é,
                a morte conheço eu.

Belzebu: Escreve lá outra sorte.

Dinato: Que sorte?

Belzebu: Muito garrida:
               Todo o Mundo busca a vida
               e Ninguém conhece a morte.

Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
                          sem mo Ninguém estorvar.

Ninguém: E eu ponho-me a pagar
                quanto devo para isso.

Belzebu: Escreve com muito aviso.

Dinato: Que escreverei?

Belzebu: Escreve
               que Todo o Mundo quer paraíso
               e Ninguém paga o que deve.

Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
                          e mentir nasceu comigo.

Ninguém: Eu sempre verdade digo
                 sem nunca me desviar.

Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
                não sejas tu preguiçoso.

Dinato: Quê?

Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
                E Ninguém diz a verdade.

Ninguém: Que mais buscas?

Todo o Mundo: Lisonjear.

Ninguém: Eu sou todo desengano.

Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

Dinato: Que me mandas assentar?

Belzebu: Põe aí mui declarado,
                não te fique no tinteiro:
                Todo o Mundo é lisonjeiro,
                e Ninguém desenganado.

M.L.

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